27/02/2008

17 - FERMENTAÇÕES VISUAIS - TRIBUNA DO NORTE - TODA TERÇA-FEIRA

VINCENT POTIGUAR

Excepcionalmente, em homenagem ao artista plástico Thomé, a coluna dessa semana do Fermentações Visuais é um depoimento escrito por Flávio Freitas, pintor e amigo de Thomé.

Thomé. Foto Iano Andrade. 2001

Quinta-feira a tarde recebo uma chamada no celular, minha mulher avisa que soube no trabalho que Thomé havia cometido suicídio com um tiro de revólver. O choque da notícia me provocou dúvida e confusão. O artista e ser humano Thomé que conheci não encaixava neste evento funesto. Pouco depois lembrei de nosso último encontro no festival do camarão na Ribeira em que nos cumprimentamos e ele me pareceu menos expansivo e alegre como eu o conheci.


Só acalmei minha revolta conversando sobre Thomé, com um grande amigo e ele me alertou: “A mente humana possui poças de areia movediça de onde nem sempre é possível escapar-mos.”


Conheci a pintura de Thomé através de minha avó Hermengarda (O’Grady de Paiva Ferreira de Souza), pintora e decoradora, que o considerava entre os três grandes pintores de Natal na década de 70: Newton Navarro, Dorian Gray e Thomé. Muitos anos depois, em meu ateliê da Av. Afonso Pena tive o prazer de conhece-lo pessoalmente em uma visita cordial. Admirador de sua pintura fiquei logo fã da pessoa de Thomé. Pela simplicidade, alegria, amizade e humildade. Impressionou-me a sua disposição em aprender comigo e meus dois ajudantes a técnica da serigrafia sobre papel. Criou um projeto de dez ou doze paisagens e logo começou a trabalhar. Intensamente, como um artista apaixonado, dedicou muitas horas em meu ateliê aperfeiçoando, afinando e adequando as técnicas da serigrafia ao resultado que pretendia. Sua risada marcante, espírito brincalhão enchia meu lugar de trabalho de alegria. Suas observações sobre cores e contrastes, as constantes alterações das matrizes, me contagiava de amor pela arte de pintar.


Em pouco tempo ele já dominava o processo completo e levou um de meus ajudantes para imprimir resto da coleção em seu ateliê. O resultado foi apresentado numa grande exposição no Palácio Potengi (Pinacoteca do RN). Serigrafias de altíssimo nível, com um grande público e sucesso de vendas. Embora ele tenha optado por papel e tintas mais baratos, coerente com seu desejo de produzir arte mais acessível, o resultado artístico da coleção de serigrafias é um marco na historia da pintura em nosso estado.


Thomé me contou que havia feito um esforço em sua carreira de pintor, e nisso foi precursor, para produzir pinturas mais baratas e ampliar no público potiguar o gosto pelas obras de arte originais, num tempo em que a moda era decorar as paredes com posters e gravuras dos grandes mestres da história da arte. Seu trabalho com a gravura em serigrafia de tiragem limitada sintonizava com o desejo de alcançar mais gente com uma obra mais barata e menos massificada.


Me impressionou fortemente como ele solucionou a gravura do Morro do Careca na luz do amanhecer. Uma composição de cor complexa e somente possível para os graduados na arte de pintar. Encantei-me também com as pinceladas livres e qualidade abstrata da gravura do parque das dunas.

Convivendo com Thomé aprendi muito e descobri que ele foi até hoje o único potiguar (morando aqui) a participar da Bienal de São Paulo, o evento de artes visuais mais importante da América Latina. Identificamos histórias em comum como o fato de termos vivido nos Estados Unidos na mesma fase da vida, o amor pelo Rio Grande do Norte e suas paisagens e às cores como linguagem para se comunicar com o mundo.

Depois desse convívio, em que eu procurava manter sempre umas três latas de cerveja na geladeira para oferecer ao mestre Thomé, ele foi deixando as visitas eventuais. E depois me disse que estava se dedicando a sua fazenda aonde montava um Hotel Fazenda. Fiquei triste em perceber seu desinteresse pela pintura, mas cada um sabe aonde quer gastar suas energias. Prometeu me convidar para uma dia de pintura na fazenda mas nunca aconteceu. Com minha mudança para a Ribeira, nunca mais recebi sua visita amiga.

No dia seguinte da sua morte, abro um dos maiores jornais do RN e vejo apenas uma foto do artista e um pequeno e medíocre texto sobre sua morte, no caderno da cidade. Nenhuma foto de suas obras, nenhuma referência a importância de sua pintura. No caderno de Cultura......nada. Só assuntos de relevância menor em relação ao artista Thomé. Nenhuma referência ao fato de Thomé ter sido mestre, guru e padrinho da minha geração de artistas neste Rio Grande. É estarrecedor o desprestígio das artes visuais em nossa a cidade. Há razões históricas e de outras naturezas para este estado de atraso, mas eu esperava mais, mesmo assim.

Nesta semana triste interrompi a leitura, dias antes da morte de Thomé, do livro “As Mulheres de Van Gogh”. Fiquei incomodado com o esmiuçamento da vida íntima do gênio da pintura, a quem tanto admiro. A genialidade de Vincent, como queria ser chamado, não tem nenhuma ligação com suas dificuldades mentais. Parei de ler o livro porque não tenho necessidade de compreender suas fraquezas e dificuldades emocionais para reconhecer a grandeza do seu legado para a humanidade. E o livro gira em torno do ato final de Van Gogh, o estampido seco do tiro de revólver contra seu próprio corpo.

Assim, com o mesmo exato gesto, Thomé Filgueira, artista, amante dos cavalos, dos animais, das mulheres, do Rio Potengi e das paisagens do vale do Ceará-Mirim, deixa esta vida... em que ficamos. Deus nosso pai, o acolha e abençoe seus familiares e amigos.

Natal, 18 de fevereiro de 2008
Flávio Freitas


PUBLICADO EM 26 DE FEVEREIRO DE 2008

19/02/2008

16 - FERMENTAÇÕES VISUAIS - TRIBUNA DO NORTE - TODA TERÇA-FEIRA

A ARTE CONTEMPORÂNEA É INTEGRADORA
Por Jean Sartief, Sânzia Pinheiro e Marcelo Gandhi


Monalisa Graffiti, versão radical L.H.O.O.Q. Bristol Reino Unido



No livro Poéticas do Processo – Arte conceitual nos Museus, Cristina Freire comenta que "Falar da história da arte contemporânea é atualizar um paradoxo. Como ser "história" e "contemporaneidade" a um só tempo?".


A arte contemporânea não segrega, omite ou ignora a história, ela a integra e a constrói. É uma reflexão de nosso tempo, de nossas linguagens e conceitos que perfazem um percurso do cotidiano, engloba um olhar sobre o passado e se lança ao futuro abarcando experimentações e privilegiando possibilidades congregatórias em diversos campos além de criar panoramas múltiplos trazendo novos questionamentos a tudo o que vivemos.


Essa possibilidade intensa é uma das fermentações mais vivas que temos. Não existira a arte contemporânea sem todas as escolas anteriores. As proposições, a atitude crítica, os novos materiais, as experimentações estão presentes em toda a história da arte, entretanto é na arte contemporânea que os dogmas caem. Ela cria e se recria sem atitudes colidentes mas trazendo à tona os questionamentos atuais e não somente a plasticidade artística.


A construção, numa obra de arte, diz respeito a sua lógica interna, e não a dos conceitos ou a lógica aristotélica, com premissas e conclusão. Trata-se, de uma racionalidade intrínseca ao processo de unificação de todos os elementos da obra. Ou seja, os elementos, a relação entre eles e a organização são constitutivos de um DIScurso, possuidor de uma lógica que faz referência ao mundo.


Arte é conhecimento tanto para o artista que cria, como para o apreciador. O artista que lança uma nova proposição como quem lança, a cada estação, uma coleção de moda perde-se em seu próprio turbilhão de idéias. É preciso maturar, aquecer as próprias perspectivas de um trabalho que se construa numa trajetória, em um amadurecimento.


Os artistas contemporâneos devem investir na pesquisa de materiais, de conhecimentos/saberes e de linguagens construindo seu percurso crítico e possibilitando novas formas de expressão que abrangem amplas possibilidades de experimentações e esse processo também delineia a história que escrevemos.
Publicado em 19 de fevereiro de 2008

15/02/2008

15 - FERMENTAÇÕES VISUAIS - TRIBUNA DO NORTE - TODA TERÇA-FEIRA

CATIVEIRO VELADO
Por Jean Sartief, Sânzia Pinheiro e Marcelo Gandhi


Obra Cor, 2006 - Acrílico dentro de caixa recortada. Obra Rubens Gerchman Foto: Maurício Lima

http://www.rubensgerchman.com.br/

A arte é o exercício da liberdade “. As palavras do crítico e militante Mário Pedrosa produziram uma das mais belas reflexões sobre o fazer artístico e de todo o conceito incluso na história da arte como também sobre a sociedade e suas ramificações.

A frase gera uma análise do sistema no qual estamos imersos e dominados sem a menor resistência crítica. O conhecimento deixou de ser um embasamento enraizado na formação do indivíduo para dar espaço a um conceito de informações fragmentadas, vazias, sem atividade intelectual, artística e cultural de bom conteúdo, ofertado a uma população enganada na mais absoluta farsa política.

A arte é ainda um dos poucos pólos de resitência e formação crítica que temos. Vivemos imersos na complexidade relativizada do consumo e da cultura de massa de embuste produzido pela mídia, e oferecida como uma linguagem acessível – na verdade – muito mais popularesca do acessível – que visa tão somente à cruel dominação do poder do dinheiro em nome de tudo o que pode ser tradição ou vanguarda legítimas.

Ao cidadão não cabe nem mesmo o questionamento do aplauso dado ao medíocre, às produções criadas unicamente com o intuito de ganhar dinheiro. Aplaudir é banal. Isso já foi dito.
O aplauso não é mais reverência – é troco de uma moeda cunhada na aparência e no oco dos sentidos.

As cidades se perdem. A memória arquitetônica e histórica é destituída em nome de um letreiro gigantesco, de prédios milionários ou de divisórias que transformam um patrimônio cultural e artístico como mais uma sede do poder, mas sempre em nome da “democracia”. Perdemos a nossa história.

O consumo alienado desvirtuou a inteligência. Pensamos na lógica dos parcelamentos dos cartões de crédito. Ignoramos a formação dos filhos em troca da “modernidade” de transformar uma criança numa miss, modelo, manequim e apresentadora de tv, como bem retratou o filme Pequena Miss Sunshine, numa das mais contundentes críticas a nossa sociedade.

Vivemos uma prostituição velada na qual crianças são induzidas a acreditar no fantasioso preço da fama e do dinheiro. A arte ainda resiste, embora sofra os mesmos atentados. Políticas culturais tacanhas e leis de incentivo que não alimentam – no mais puro sentido da vitalidade – ganham espaço.

Se não praticarmos a revolução do pensamento abrindo mão de uma sociedade sem tanta opressão, violência política e armada – numa indústria de segurança que cresce tanto ou mais que a própria indústria bélica, seremos eternamente reféns da alienação e vamos seguir preferindo ver um Big Brother Brasil a ir a uma exposição de arte.

Quando as políticas públicas se travestem nos discursos vazios que preenchem televisão na campanha de obras visíveis ao invés de agir participativamente nas propostas de ações sociais, urbanas, artísticas ou em qualquer campo gerador de uma liberdade melhor, e de investir na tríade básica da educação, saúde e cultura, temos a certeza de que nada mudará.

Mário Pedrosa defendia que a arte e a política são as duas formas mais elevadas da expressão humana e a única postura diante delas é a do engajamento militante e crítico. Algo se perdeu nesse caminho.
Hoje fazemos coro à atriz Marília Pêra em relação a maior lição que tinha aprendido com as ideologias políticas: “Tanto faz o lado em que os políticos estão. O que eles querem apenas é poder e dinheiro. O resto não passa de utopia.”


PUBLICADO EM 12 DE FEVEREIRO DE 2008