VINCENT POTIGUAR
Excepcionalmente, em homenagem ao artista plástico Thomé, a coluna dessa semana do Fermentações Visuais é um depoimento escrito por Flávio Freitas, pintor e amigo de Thomé.
Thomé. Foto Iano Andrade. 2001
Quinta-feira a tarde recebo uma chamada no celular, minha mulher avisa que soube no trabalho que Thomé havia cometido suicídio com um tiro de revólver. O choque da notícia me provocou dúvida e confusão. O artista e ser humano Thomé que conheci não encaixava neste evento funesto. Pouco depois lembrei de nosso último encontro no festival do camarão na Ribeira em que nos cumprimentamos e ele me pareceu menos expansivo e alegre como eu o conheci.
Só acalmei minha revolta conversando sobre Thomé, com um grande amigo e ele me alertou: “A mente humana possui poças de areia movediça de onde nem sempre é possível escapar-mos.”
Conheci a pintura de Thomé através de minha avó Hermengarda (O’Grady de Paiva Ferreira de Souza), pintora e decoradora, que o considerava entre os três grandes pintores de Natal na década de 70: Newton Navarro, Dorian Gray e Thomé. Muitos anos depois, em meu ateliê da Av. Afonso Pena tive o prazer de conhece-lo pessoalmente em uma visita cordial. Admirador de sua pintura fiquei logo fã da pessoa de Thomé. Pela simplicidade, alegria, amizade e humildade. Impressionou-me a sua disposição em aprender comigo e meus dois ajudantes a técnica da serigrafia sobre papel. Criou um projeto de dez ou doze paisagens e logo começou a trabalhar. Intensamente, como um artista apaixonado, dedicou muitas horas em meu ateliê aperfeiçoando, afinando e adequando as técnicas da serigrafia ao resultado que pretendia. Sua risada marcante, espírito brincalhão enchia meu lugar de trabalho de alegria. Suas observações sobre cores e contrastes, as constantes alterações das matrizes, me contagiava de amor pela arte de pintar.
Em pouco tempo ele já dominava o processo completo e levou um de meus ajudantes para imprimir resto da coleção em seu ateliê. O resultado foi apresentado numa grande exposição no Palácio Potengi (Pinacoteca do RN). Serigrafias de altíssimo nível, com um grande público e sucesso de vendas. Embora ele tenha optado por papel e tintas mais baratos, coerente com seu desejo de produzir arte mais acessível, o resultado artístico da coleção de serigrafias é um marco na historia da pintura em nosso estado.
Thomé me contou que havia feito um esforço em sua carreira de pintor, e nisso foi precursor, para produzir pinturas mais baratas e ampliar no público potiguar o gosto pelas obras de arte originais, num tempo em que a moda era decorar as paredes com posters e gravuras dos grandes mestres da história da arte. Seu trabalho com a gravura em serigrafia de tiragem limitada sintonizava com o desejo de alcançar mais gente com uma obra mais barata e menos massificada.
Me impressionou fortemente como ele solucionou a gravura do Morro do Careca na luz do amanhecer. Uma composição de cor complexa e somente possível para os graduados na arte de pintar. Encantei-me também com as pinceladas livres e qualidade abstrata da gravura do parque das dunas.
Convivendo com Thomé aprendi muito e descobri que ele foi até hoje o único potiguar (morando aqui) a participar da Bienal de São Paulo, o evento de artes visuais mais importante da América Latina. Identificamos histórias em comum como o fato de termos vivido nos Estados Unidos na mesma fase da vida, o amor pelo Rio Grande do Norte e suas paisagens e às cores como linguagem para se comunicar com o mundo.
Depois desse convívio, em que eu procurava manter sempre umas três latas de cerveja na geladeira para oferecer ao mestre Thomé, ele foi deixando as visitas eventuais. E depois me disse que estava se dedicando a sua fazenda aonde montava um Hotel Fazenda. Fiquei triste em perceber seu desinteresse pela pintura, mas cada um sabe aonde quer gastar suas energias. Prometeu me convidar para uma dia de pintura na fazenda mas nunca aconteceu. Com minha mudança para a Ribeira, nunca mais recebi sua visita amiga.
No dia seguinte da sua morte, abro um dos maiores jornais do RN e vejo apenas uma foto do artista e um pequeno e medíocre texto sobre sua morte, no caderno da cidade. Nenhuma foto de suas obras, nenhuma referência a importância de sua pintura. No caderno de Cultura......nada. Só assuntos de relevância menor em relação ao artista Thomé. Nenhuma referência ao fato de Thomé ter sido mestre, guru e padrinho da minha geração de artistas neste Rio Grande. É estarrecedor o desprestígio das artes visuais em nossa a cidade. Há razões históricas e de outras naturezas para este estado de atraso, mas eu esperava mais, mesmo assim.
Nesta semana triste interrompi a leitura, dias antes da morte de Thomé, do livro “As Mulheres de Van Gogh”. Fiquei incomodado com o esmiuçamento da vida íntima do gênio da pintura, a quem tanto admiro. A genialidade de Vincent, como queria ser chamado, não tem nenhuma ligação com suas dificuldades mentais. Parei de ler o livro porque não tenho necessidade de compreender suas fraquezas e dificuldades emocionais para reconhecer a grandeza do seu legado para a humanidade. E o livro gira em torno do ato final de Van Gogh, o estampido seco do tiro de revólver contra seu próprio corpo.
Assim, com o mesmo exato gesto, Thomé Filgueira, artista, amante dos cavalos, dos animais, das mulheres, do Rio Potengi e das paisagens do vale do Ceará-Mirim, deixa esta vida... em que ficamos. Deus nosso pai, o acolha e abençoe seus familiares e amigos.
Natal, 18 de fevereiro de 2008
Flávio Freitas
Natal, 18 de fevereiro de 2008
Flávio Freitas
PUBLICADO EM 26 DE FEVEREIRO DE 2008